Senhor Manuel

Desde a infância, ele tem gosto por aprender. A própria professora do ensino básico (…) alertou que o rapazinho deveria seguir os estudos, que ele “tinha cabeça”.


Diariamente, o senhor Manuel sai do lar onde vive e dirige até a Drogaria Estádio, na Rua Cruz de Pau 296. Ele estaciona seu Jaguar, adentra à loja e logo se coloca ao balcão do negócio fundado por ele, aos 29 anos, em 1966. O Estádio do Mar, do Leixões Sport Club, fundado em 1964, fica a quinhentos metros dali.

Parte de sua vida, ao menos do ponto de vista comercial, confunde-se com a do Bairro e Freguesia. Admiro Manuel por ser um homem vivido e exímio numismata. Com a coleção que possui, já realizou 25 exposições. Em uma delas, foi posteriormente presenteado por um diplomata turco, tamanha a expressividade da coleção de moedas e notas que ele tem da Turquia. Aliás, você sabe quem foi o primeiro colecionador do mundo? De ouvir ele falar por aí, aprendi…

Desde a infância, ele tem gosto por aprender. A própria professora do ensino básico, professora Laura Assunção Miranda – alertou que o rapazinho deveria seguir os estudos, que ele “tinha cabeça”. Porém, como seu irmão gêmeo, António, havia se atrasado, seu pai achou melhor que ambos fossem trabalhar, e Manuel precisou deixar o colégio para trás, logo depois de fazer a comunhão, concluir a quarta série e ter feito a admissão.

Cursou, por fim, a escola da vida, como muitos neste Bairro.

Ele começou a trabalhar aos 12 anos, a buscar por si só uma oportunidade.

Lembra-se de ouvir do empregador:

“Gosto quando um miúdo vem pedir trabalho, é sinal que está mesmo disposto. Sempre desconfio quando são os pais a pedir pelos filhos…”

Antes, Manuel tivera uma sofrível experiência em Feira da Lameira onde se candidatou, com a conivência do pai, a trabalhar em uma farmácia. Como era de Guifões, dada a distância, passou a viver por lá, vindo a casa apenas quando o pai podia buscá-lo. Porém, as condições oferecidas com o tempo se mostraram sofríveis. Para comer, diariamente, davam-lhe apenas arroz com manteiga. A certa altura, já enjoado do gosto, enquanto emagrecia, o cão – a quem oferecia o prato – engordava. Numa ocasião, ao passar o Natal em casa, seu apetite era tamanho que o pai desconfiou que o menino andava a passar fome. Deu um jeito de encerrar o assunto e o tirou de lá. Com o encaminhamento da vida, ele acabou por ir trabalhar em uma drogaria…

Em casa, eram em quatro irmãos e Carolina. Ela chegara à família depois de a mãe ter morrido no parto. O pai pediu à vizinha, mãe de Manuel, que ficasse com a bebé enquanto ele trabalhava numa das muitas pedreiras que havia na região e que atendiam à construção civil. Um mês depois, um acidente de trabalho o levou à morte e a menina foi adotada. Cresceu como sua irmã e mais tarde tornou-se prima, mas esta é uma outra história.

Mesmo franzino, Manuel tocava clarinete na Banda de Matosinhos e chegou a tocar no coreto em duas festas do Senhor de Matosinhos. Mas vivia doente e, quando via o médico, o doutor receitava-lhe, além de outras drogas, uma garrafada de agriões com açúcar – que depois de fervido e refrescado, era docinho de se tomar. Por fim, considerando que o clarinete lhe exigia imenso, acharam por bem que ele fosse tocar órgão, para não ter de soprar. Então, colocaram-no como presidente da JOC – Juventude Operária Católica. Uma jovem que conheceu ali, Maria Flora Mendes Ferreira, também lhe tirou o fôlego, mas da alma. Apaixonaram- se e começaram a namorar. No entanto, Manuel advertiu-lhe:

“Eu só me caso quando estiver estabelecido na vida!”

Nesta época ele trabalhava numa Drogaria, na baixa do Porto, bem ao lado da Farmácia Birra. Lá, o patrão tinha uma bomba de gasolina. Quando uma vez ou outra parava um carro para abastecer, Manuel colocava uma bata e ia atender. Caprichava no serviço.

À medida que o namoro foi ficando sério – e longo, a mãe de Manuel percebeu que corria o risco de o menino buscar uma condição de vida melhor na França, a trabalhar numa estação de serviços. Foi falar com seu irmão, tio do jovem, Manuel Araújo Klein, casado com uma senhora chamada Carolina. Eles estavam muito bem de vida e não tinham filhos. Klein era sócio de uma fábrica de botões de madrepérola, a Espinho e Jorge Lda., para a qual a mãe de Manuel trabalhava, a vender botões para costureiras. O negócio todo acontecia em envelopes que se revezavam a levar dinheiro e trazer botões. A mãe pediu que eles ajudassem o filho a ter um negócio próprio – para viver e trabalhar – e ficou acertado que o apoiariam com um terreno na Cruz de Pau, mais o material. Porém, ele próprio deveria tratar da construção.

Encontrado o terreno, um amigo desenhador, funcionário da Câmara o ajudou com a planta do imóvel. Naquele tempo, as drogarias precisavam de um bom espaço, pois mantinham em estoque cimentos, tijolos e azulejos, o que também demandava muito esforço físico porque os produtos eram carregados e descarregados à mão. Só mais tarde, com o surgimento dos centros comerciais especializados, o ramo voltou-se mais para as ferragens e ferramentas.

Enfim, com tudo encaminhado, Manuel e Flora casaram-se e a inauguração da Drogaria Estádio foi feita com a presença do Presidente da Câmara, o Engenheiro Pinto Almeida, em 1966.

Entre os clientes, havia pescadores, lavradores e operários. Por conta da guerra em Angola muitos portugueses começaram a voltar para cá. As pessoas iam comprar material para erguer uma secção improvisada para os familiares recém-chegados que precisavam, ao menos, de um lugar para dormir.

Vou contar um segredo, que fique entre nós. Ao entrar na Drogaria, podes ainda encontrar frascos com medicamentos. Pela experiência que tinha, Manuel, em outros tempos, atrevia-se a manipular desde garrafadas a pomadas, o que estivesse a seu alcance, para ajudar a população. Para os pescadores, usava “fezes de ouro” para preparar um líquido que ajudava a impermeabilizar os tecidos das roupas com que iam pescar, já que ainda o uso do plástico não era como conhecemos. Para as senhoras, ora manipulava pomadas, ora indicava o uso de um produto – como fez com dona Laura Brasileira, que tinha uma mercearia a dividir espaço com a barbearia do filho. Manuel vendeu-lhe Aseptal para fazer a higiene íntima e refrescar a “boca do corpo”.

Na Drogaria também arriscava a cortar vidros sob medida e comercializava o gás Cidla – uma chama viva onde quer que viva.

Os lavradores diziam que a iniciativa de Manuel vinha do céu. Desde que ele abrira o negócio, quando algum deles estava a “sulfatar” as batatas ou as videiras, não se viam mais à volta quando o sulfato acabava. Antes de haver ali a drogaria, tinham de ir a casa e mudar de fato para ir à vila. Agora, o senhor Manuel os deixava entrar, à vontade. Quando entravam lá, levavam 1kg de sal e 1kg de sulfato em pedra.

Quando eu digo que Manuel tem histórias, acredite. Sua loja desde o início tinha duas entradas possíveis – uma voltada à rua Cruz de Pau e outra voltada para a Quinta Seca. Na montra principal havia um aviso colado, com uma seta desenhada e a orientação: ENTRADA PELAS TRASEIRAS. Ao saber que Américo Tomás iria ao Bairro fazer uma inauguração, tratou de ir a um órgão público onde era conhecido, pedir emprestado a fotografia do então Presidente da República e colocou na montra. Flora ainda enfeitou a imagem com umas fitas.

Um dia, aparece por lá um senhor alto, de gabardine. Pediu licença para entrar e conhecer a loja. Sem se apresentar, ficou a olhar tudo sem pressa, atentamente. Depois de muito estar ali, por meia-hora, ele chamou Manuel e disse:

“Olha, você tem aí a foto do Presidente da República, ele vem aqui em breve, eu acho bem. Mas você tem junto da fotografia, este cartaz “ENTRADA PELAS TRASEIRAS”. Não fica bem.”

Sem perceber o que de facto o homem queria dizer, Manuel argumentou que iria melhorar o cartaz já gasto. Só então, pela expressão do gajo, se deu conta do que estava sendo dito. A foto com os dizeres podia ter dupla conotação. Ele desculpou-se prontamente e trocou o aviso de sítio.

Quando chegou o dia da inauguração, ao passar o Presidente, ele viu o mesmo homem na comitiva e descobriu que havia sido visitado pela PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado. Correra perigo!

Sempre atuante na comunidade, Manuel foi membro da Associação Recreativa Aurora da Liberdade por quinze anos e por mais de vinte esteve na direção da Associação Comercial de Matosinhos, da qual o filho Alberto faz parte. Diga-se de passagem, ele foi premiado pelas montras que criava.

Seus talentos iam além: era Manuel que, nos primórdios do Bairro, reportava aos jornais o que acontecia de especial por aqui. Seus artigos eram tão apreciados que lhe rendeu o reconhecimento como jornalista, recebendo a carteira da Associação de Jornalistas e Homens de Letra do Porto.

Cabe ainda dizer que, convidado pelo engenheiro Hermano Armênio, lecionou numa escola preparatória profissional, a ensinar sobre práticas comerciais. O menino que foi tirado à escola, a vida transformou em professor.

Tamanha é sua disposição aos 84 anos que ele poderia dar aulas sobre autoestima. Afinal, ele mesmo diz:

“Eu aqui sou muito querido, nunca fiz asneiras.”

Eu assino embaixo. Afinal, eu, que tudo observo, sei.

Ah, e antes que eu me esqueça, o primeiro colecionador do mundo foi Noé…