Dona Eugénia e Senhor João

Dona Geninha nasceu em casa. Naquele tempo só se ia ao hospital se as coisas corressem mal e a sua mãe foi ajudada por uma senhora habilidosa.


Falando em fazer o bem, o Sr. João da Confeitaria Padaria Nacional costuma dizer que a esposa, Maria Eugénia Henriques da Silva, dona Geninha, com quem está casado há 35 anos, tem dois corações: um do lado esquerdo e outro do lado direito.

Atento ao mundo, João pouco assiste TV e não tem telemóvel. Mantém-se atualizado pelo rádio. Os filhos, jovens, admiram-se com isso. Professores formados, eles não demonstram interesse em dar seguimento ao negócio estabelecido na Rua da Cruz de Pau, nr. 39. O pai lamenta por uma geração centenária de comerciantes acabar neles.

Nascido no ano em que rebentou a Guerra no Ultramar, 1961, ele próprio nunca saiu de Portugal. Quando chegou ao Bairro, Matosinhos era uma terra onde se trabalhava muito porque as pessoas tinham emprego. Na sua compreensão, passados trinta anos, as pessoas já não trabalham como antes. Matosinhos era o segundo maior polo industrial do país, com quase cinquenta fábricas de conserva e produtos ligados a pesca. Era um polo de trabalho, que se tornou um polo habitacional, um dormitório. Um dormitório chic.

A Cruz de Pau que, segundo ele, chegou a ter fama de ser uma terra de bandidos, tem hoje apartamentos de último andar a serem vendidos a quase um milhão de euros.

Voltando aos filhos, conclui:

“Os novos não querem nada com os velhos, ou os bairros. Qualquer dia desses, quando me der na telha eu fecho a porta e vou-me embora. A vida é assim…”

Por outro lado, dona Geninha reconhece o esforço imenso de manter o negócio aberto. Ela e o marido lidam diariamente com diferentes tipos de pessoas e demandas e acabam por nem ter tempo para si. O hábito de leitura, que tanto dona Geninha apreciava, foi ficando para trás. Num suspiro triste, ela desabafa:

“O comércio é bonito, mas também embrutece.”

Enquanto isso, é possível passar na loja e tomar um café ou comprar alguma fruta ou hortaliça – novidade que veio junto com a pandemia, apresentando-se como alternativa para que se mantivessem de portas abertas.

Senhor João vem de Vila Nova da Telha, da Maia. Eles conheceram-se na escola, entre o décimo e o décimo primeiro ano. Os dois estão naquele lugar desde 1992 e vivem muito próximo daqui. O nome do estabelecimento foi herança do negócio que a família dela tinha, a Padaria Nacional, fundada pelos avós paternos, em 11 de novembro de1925, primeira padaria desta zona do Concelho.

O avô, Manoel Silva, faleceu de morte súbita, mas a avó Miquinhas, com os filhos, principalmente o senhor José, ou Zequinha da Nacional, como alguns também o conheciam, pai de dona Geninha, mantiveram o negócio.

Senhor Zequinha, faleceu aos 86 anos, em 2012. Sua esposa, em 2021. Era um casal de muito trabalho, mas nada ambicioso.

Dona Geninha nasceu em casa. Naquele tempo só se ia ao hospital se as coisas corressem mal e sua mãe foi ajudada por uma senhora habilidosa. A menina cresceu e chegou a estudar na EB1 com a professora Fernanda, que vinha a pé de António Aroso para dar aulas por aqui, quando o mundo parecia menor.

Sua tia tinha uma mercearia e um depósito de pães, que vinham da padaria dos avós, donos do terreno, ali onde hoje está a Grelha D ́Ouro. Aos finais de semana era obrigatório fechar e nem pão fresco havia. Para poder manter-se aberta, a tia vendia vinho ao copo no balcão e uma persiana fechava a vista aos produtos de mercearia. Entre seus doze e quinze anos, dona Geninha estava sempre na padaria ou por ali, junto ao pai, e o irmão a ajudá-la. Tempo em que o Leixões estava na primeira divisão e vinha aqui o Benfica, o Sporting e o Porto jogar. Estes grupos grandes traziam muita gente, não havia mãos a medir. Zequinha ajudava a irmã a colocar os barris de vinho no sítio e a apoiava no que fosse preciso.

As vendas, nestes dias, valiam a pena, mas traziam algum risco, pois as claques eram muito ferrenhas e havia pancadaria. Muitas vezes era preciso fechar a porta. As pessoas ficavam lá e a Guarda Republicana descia com os cavalos para acalmar os ânimos e as pessoas iam fugindo e até entravam dentro das casas que ficavam onde estão a construir um prédio, ali, nas alminhas.

Bem que Geninha gostaria de ter avançado nos estudos, mas o pai precisava, e gostava, dela ao balcão, enquanto o filho mais velho ficava com o fabrico.

“Então, meu pai, eu quero estudar – dizia a filha”

“Queres estudar, mas também tens que me ajudar, eu preciso de ti – respondia-lhe o pai.”

Ela levantava-se às seis da manhã e, às vezes, até antes, quando um empregado falhava. Por vezes questionava veemente porque não poderia ter uma vida como a das amigas. O pai era polivalente, sabia de tudo, do fazer ao cozer o pão, mas contava sempre com a ajuda de um filho.

A rua da Cruz de Pau era um caminho de cargas, de terra batida. Quase em frente à confeitaria, havia a ilha da Morte e a ilha Beatriz. Uma era comprida, a outra era mais larga, casinhas muito fracotas, pequenas, todas juntinhas, seguidas, retretes de madeira partilhadas. Algumas famílias chegavam a ter mais de dez filhos.

Quando dona Geninha e senhor João se estabeleceram por aqui, só havia a sua loja. Os clientes do senhor José, que conheciam dona Geninha, diziam:

“Ó senhor José, agora a Geninha vai para cima e eu vou com ela.”

Para o pai estava tudo bem, desde que a rapariga mantivesse a venda do pão.

Um dia, para ser mais preciso, em 21 de junho de 1995, Geninha estava no café quando um cliente a chamou:

“Está aí Geninha?”

“Estou.”

“Então, vá para casa que tem uma grande desgraça.”

“Como assim?”


“A padaria estar a arder.”

Ela estava sozinha. O senhor João saíra para o mercado e os filhos estavam no infantário. Senhor Zequinha já estava adoentado e, na comunicação social, na rádio, já estava tudo a ser noticiado. Ela desandou-se fora. Correu ao lado, onde havia o bazar de louças, de uma senhora amiga e pediu-lhe que tomasse conta da loja.

A casa onde os pais viviam e onde ela mesmo vive hoje era parede com a padaria. Lá, encontrou a vizinhança toda com baldes de água para ajudar e, por sorte, o fogo não se alastrou e ela pôde retirar seus pais em segurança. O foco do incêndio começara no sótão, num forno de alvenaria que atendia as pessoas que viviam no Bairro a assar o que fosse preciso, principalmente nas festas do Senhor de Matosinhos, Páscoa, São João, Natal e Comunhão. Elas traziam as assadeiras com os cabritos e entregava para o senhor José, que anotava os nomes para depois entregar direitinho, como a dona Detinha, a dona Maria Angelina. Foi um desaire. Ao menos, ninguém se magoou.

O café mantém seus frequentadores da geração mais antiga, uma gente muito simples e de luta, que criou bons filhos e boas raparigas. Velhotas que viram dona Geninha nascer:

“Do tempo em que os políticos eram respeitosos, iam de bicicleta a pedal e viviam, de facto, no meio do povo. Da época em que as mulheres iam a pé trabalhar nas fábricas de conserva e quando voltavam a casa, tinham de lavar a roupa, fazer o comer, tratar dos filhos e preparar as marmitas para os homens levarem para o trabalho no outro dia.”

– ressalta senhor João.

O casal viu esta zona se formar e transformar. Primeiro o Bairro foi crescendo e é só então que as ilhas, a partir dos anos 2000, no governo do presidente Narciso Miranda, começaram a ser erradicadas.

Dentro da Cruz de Pau há subzonas. O Bairro da Câmara que fica por trás da antiga EB1, foi um dos primeiros a ser edificado. Os prédios trouxeram para cá uma população com outros hábitos. Enquanto, quando havia as ilhas, o sítio era bem mais movimentado, todos se conheciam, andavam mais a pé e faziam do café um ponto de encontro onde conversavam e se atualizavam. Às vezes, o movimento era tamanho que fechavam para lá das 19h30. Quando houve a mudança do Escudo para o Euro, as senhoras pediam ajuda para fazer o câmbio da reforma. A confiança era imensa. Antigamente, e ainda nos dias de hoje, as pessoas que não sabiam ler, ao ver os cartazes fixados, perguntavam ao casal o que é que estava escrito. Assim, ficavam informados sobre os editais da Câmara, eventos públicos e afins.

Nesses tempos áureos, no Natal e na Páscoa, o senhor João montava uma mesa grande, com cavaletes e tábuas e dona Geninha criava umas saias, umas toalhas. Preparavam juntos uma mesa temática onde apostavam na venda de bons produtos, como as amêndoas importadas da França.

Aprendi com dona Geninha que cada época é uma época e cada forma de viver é uma forma de viver. A Cruz de Pau é uma terra boa, de gente boa, nos dias de outrora e de hoje…