Dona Natália
Ela faz um esforço para ouvir o que está sendo dito, mas com atenção, percebe tudo que ouve e tem seu senso de humor como aliado.
Em tudo que diz, mete graça: “Não me metas em confusão!”
Há tanta gente boa a viver por aqui. Dona Natália é outra. Aos 75 anos, tem ares de uma rapariga. Vaidosa, traz o cabelo tingido de loiro e as unhas bem feitinhas. Frequenta o salão de beleza da afilhada. Gosta dos bailes e fados, e das festas do Senhor de Matosinhos.
Ela faz um esforço para ouvir o que está sendo dito, mas com atenção, percebe tudo que ouve e tem seu senso de humor como aliado. Em tudo que diz, mete graça:
“Não me metas em confusão!”
Quando é chamada de dona, também protesta:
“Não me chames de dona, sou dona daquilo que é meu!”
Ao dizer suas asneiras, provoca o riso e desopila o que é preciso. Às vezes, contrariada, ao mesmo tempo em que sorri, levanta a mão direita num gesto enérgico enquanto diz:
“Os mandamentos de Deus são dez, os meus são cinco!”
Sócia número 9 da Associação de Moradores, com a construção no Bairro de um conjunto habitacional, dona Natália mudou-se da ilha onde vivia, ali ao lado, para a Rua do Marujo, onde vive há quarenta anos. Mas na Cruz de Pau, ao todo, vive há setenta anos.
Seu pai, Manuel, e sua mãe, Maria Cândida, conheceram-se em Gaia, onde Natália nasceu, na Rua João Deus, no dia de Natal. Sua mãe estava no rio a lavar e as amigas a aconselharam a ir embora porque pressentiam que o bebé estava para nascer. A mãe, que já tinha um menino de dois anos, expressou que gostava que daquela vez fosse uma menina. Chegou à ilhita onde morava e foi o tempo! Dona Natália nasceu atrás da porta da cozinha, num alguidar de barro…
Aos 5 anos, a família mudou-se para a Cruz de Pau. Cresceu entre quatro irmãos e viveu por trinta anos na ilha Beatriz, cujos senhorios eram a dona Beatrizinha, casada com o senhor Manuel – e tinham um filho que trabalhava com bicicletas e motas.
Na infância, vivia cercada de crianças. Brincava de arco, peão e macaca. Ia nadar no rio, tomar banho, perto de onde as mulheres lavavam as roupas nos tanques, onde está a paragem do Pedro Hispano do Metro.
De menina, dona Natália já era uma “Maria Rapaz”. Refilona, andou na antiga Escola Primária da Cruz de Pau. Um dia, arremessou o tinteiro à professora, que mandou que seus pais fossem ter com ela. Ela respondeu:
“O meu pai não tem tempo nem de beber um copo e minha mãe trabalha!”
A polícia veio, de bicicleta, para levá-la para casa. No dia seguinte, quando sua mãe foi à escola, tratou de deixar claro o quanto conhecia a filha que tinha e desconfiava que o mal feito não teria sido à toa. Dona Natália estudou ali até a quarta classe e foi trabalhar.
Entre os campos agrícolas que havia por aqui, seu pai tinha um terrenito, onde podia cultivar. Ele era moleiro. Ao final de semana, numa época em que ele estava doente, ela ia buscar a féria, o patrão dava-lhe uma saca de pães e um kilo de farinha. O pai era uma boa pessoa. Às vezes bebia, mas não se pegava com ninguém. Toda gente gostava dele. A mãe, era uma verdadeira joia.
Depois de deixar a escola, a rapariga foi trabalhar na fábrica de conservas Serrano, na Boa Nova. Empapelava três caixas em uma hora e usava as cravadeiras. Ela e mais duas amigas. Uma delas, chamada Generosa, matou-se. Deus a tenha.
Mais tarde, dona Natália foi para as confeções. Iniciou na Peter Pan e mudava para onde lhe pagassem melhor. Era tão menina que quando aparecia uma fiscalização a escondiam debaixo dos tecidos.
No Carnaval gostava de mascarar-se. Ia com a malta de amigas para os bailes. Improvisavam os trajes. Até seu pai entrava na brincadeira e parecia uma mulher autêntica.
Dona Natália casou-se aos vinte anos, já levando a filha ao ventre. O casamento durou o suficiente e celebra, com alegria, os cinquenta anos de divórcio.
Em cincos meses de trabalho como auxiliar de enfermagem no Hospital São João, aos 23 anos, aprendeu o que era preciso para dar injeções, fazer curativos, tirar pontos. Ela faz tudo. Só não pica à canalha por dó e medo de magoar.
Reformada, diariamente, ela cuida de Dona Maria José, uma senhora de 94 anos, mãe da sua vizinha. Pelas manhãs, dá-lhe o pequeno-almoço, trata-lhe a fralda, dá-lhe um banho. Depois volta para dar-lhe o almoço e, às 18h30, o jantar. Faz o mesmo a um outro senhor.
Devota de Santa Rita e Nossa Senhora de Fátima, não tem papas na língua a dar notícias dos padres que ali passaram.
Em sua rotina matinal, vai cedinho à Padeirinha do Mar e pega o pão para levar ao Café Ferrari, onde toma o pequeno-almoço e a seguir ajuda a servir às pessoas. Às 7h30, busca outra saca de pão e vai-se embora.
Despachada, sempre a surpreender-nos com as palavras, dona Natália é de fazer bem a toda gente, à sua maneira e linguagem, à sua alegria. Eu Muro, que presto atenção, sei.